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Maria João Cantinho



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À Conversa com Ana Marques Gastão

09-06-2015 19:18

À Conversa com Ana Marques Gastão

 

 

Poeta notável, crítica literária e redactora cultural do Diário de Notícias, Ana Marques Gastão nasceu em 1962, em Lisboa.

Iniciou a sua carreira literária com Tempo de Morrer, Tempo para Viver (1998), tendo-se-lhe seguido Terra sem Mãe (2000) e Três Vezes Deus, em co-autoria com António Rego Chaves e Armando Silva Carvalho (2001), Nocturnos (2002)

Recentemente publicou Nós/Nudos (2004), um livro em que dialoga com as obras de Paula Rego. Reconhecida como uma voz peculiar entre os novos poetas portugueses, integra várias antologias e tem representado Portugal em diversos eventos internacionais.

Editou no Brasil uma antologia pessoal intitulada A Definição da Noite (Escrituras, 2003).

Ana Marques Gastão acedeu a falar à Storm-magazine, acerca da sua obra mais recente.

M.J.C. – Como nasceu o projecto deste livro “Nós/Nudos”? E porquê ser bilingue?

A.M.G. – «Nós/Nudos» (lançado no Festival de Artes e Letras, em Barcelona, por ocasião da exposição «Cinco Pintores da Modernidade Portuguesa», e daí a edição ser bilingue – português/castelhano) nasceu da admiração que sinto pela obra de Paula Rego, que ousa penetrar no território da ambiguidade afectiva. Foi isso que me interessou na sua obra, sobretudo isso, essa capacidade de, no uso da desproporção, facilmente vermos a generosidade transformar-se em egoísmo, ou o amor em posse. Essa inquietante estranheza que os seus quadros transmitem emerge, tantas vezes, do lugar do doméstico, do oculto, do que envergonha, da solidão, do desamparo, do terrífico. No fundo, estamos no domínio das relações de poder e da incomunicabilidade ou da comunicabilidade deformada.

M.J.C. – No seu livro “La Logique de la Sensation”, Gilles Deleuze fala de Bacon, dizendo algo que me parece aplicar-se à pintura de Paula Rego: “Não se trata de reproduzir ou de inventar formas, mas de captar forças.". Não é a cópia do real que ali encontramos, mas algo de poderoso, visceral, que também passa para a sua poesia. Concorda?

A.M.G. –  Não há processos miméticos nem na obra da Paula, nem na minha poesia quando esta mantém uma relação oblíqua com ela. Essa captação de forças existe, mas, a meu ver, Bacon inspecciona e enclausura a presa que dorme no interior do retrato. Nunca conta histórias como Paula Rego, nem possui a sua humanidade, sendo, obviamente, um grande pintor. Bacon confronta-se com a questão de saber como pintar a sensação, ou como tornar visível o grito sem deixar na sombra a força sensível que ele possa conter. A Paula interessa-lhe essa força sensível. Há uma enorme ternura e inocência, maliciosa porém, não maligna, em toda a sua violência. Ambos se detêm na figura humana, mas Bacon fá-lo pela manifestação de uma energia negativa e destruidora, que radicaliza a tradição negra do romântico William Blake, tornando-a quase insuportável, na ausência de dimensão metafísica e religiosa, no sentido etimológico. Paula parte de uma infância de medos, pinta para combater o medo e a injustiça, descobrindo o absurdo na sua multiplicidade de elementos contraditórios: amor/ódio; verdade/mentira; humanidade/crueldade; fragilidade/ferocidade; liberdade/repressão. Artaud falava do despedaçar da linguagem para tocar a vida. Acho que é disso que falamos.

M.J.C. - – Isso é verdadeiramente o coração do procedimento alegórico, no entender de Walter Benjamin, quando fala da destruição dos elos para compreender e para aceder à vida. Aqui, o movimento aniquilador faz-se em relação à linguagem, como quando cita Artaud, mas poderíamos falar dos modernos, em geral, da ideia de uma fragmentação da bela totalidade, uma ideia que os românticos descobriram fracassada. A sua poesia faz-se nessa conformidade, numa travessia e descoberta da complexidade dialéctica da vida? Na exploração dos contrários, da movência obscura entre as forças da vida?

A.M.G. – Mas a alegoria não surge daquilo que é mais inquietante no ser humano, do espanto, da mais profunda das solidões e vivência da incomunicabilidade? Essa estranheza não contém em si a mortalidade? A criação surge daí, pelo menos a meu ver. Quanto a Paula, pinta à beira do precipício numa incomensurável solidão para «dar ao terror um rosto». E fá-lo num movimento de grande fisicalidade. A arte nasce do grito, nessa perspectiva, como lugar-limite, não de uma auto-apregoada angústia, mas de um aquém para lá da representação. Quanto à problemática do fragmento, parece-me solidária com uma visão antropocósmica do mundo. A obra em miniatura, pulverizada, totalidade na redução. Os românticos entenderam isso; o recurso ao fragmento corresponde a uma necessidade intrínseca de afirmação. Finito e infinito não possuem nenhuma medida comum e a comunicação entre ambos pode passar por um contacto fugidio. Quanto mais breve menos inexacto. O fragmento traduz as intraduzíveis forças em presença. A poesia passa, para mim, também um pouco por aí, por esse mover-se claro-escuro, a tal exploração de contrários de que fala, que tenta captar, nas palavras de Clarice Lispector, o «invisível na própria lama». Passa ainda pela descoberta da crueza da luz. Não deixa de ter uma perspectiva epistemológica a escrita, talvez porque se tenha perdido algo de essencial.

M.J.C. – Curiosamente, a par desse ímpeto destrutivo e aniquilador que frisa, que dá a ver o lado horrível da beleza, o seu poema “Assunção” que tem no início um verso terrível, “(…)escreve-se a noite/ a toda a largura do mundo(…)” termina com o verso “(…)O riso de Deus é trémulo e cintilante. E o anjo,/ criança sábia, nada diz.” Há sempre um lado salvífico no poema, para si?

A.M.G. – O poema não salva de nada. Não escreveu Rilke que «o belo não é senão o começo do terrível»? Todo o anjo é terrível, mas desejamos não acreditar nessa possibilidade. O poema é um relampejo, um instante que pode ser de plenitude ou de um enorme vazio. Ensina a derrota, a lucidez, quebra a monotonia, é uma mínima libertação do tédio, tendência do coração. O poema dir-se-ia um lugar de relações e de palavras escolhidas, um espaço para a justeza da palavra. O mundo é injusto. A insatisfação, a inquietude fazem do poeta um fabricador de imagens.

M.J.C. – Quando olho para um quadro de Paula Rego vejo sempre um combate. Como se entrássemos num ambiente de pesadelo, de noite espessa, tal como na sua poesia. Uma tapeçaria que se inscreve no umbral entre o sono e a vigília. Concorda?

A.M.G. – Paula Rego cria um mundo povoado por figuras que manifestam a sua verdade: o medo, o perigo, a opressão, a euforia ou a catástrofe, esse combate que a sociedade hipócrita teima em esconder. Metaforiza para não morrer no caos circundante, criando um teatro de emoções. É isso que impressiona na obra, de uma imensa coragem. Não tem nada de ornamental a sua pintura, apesar de todo o rigor técnico-artístico. Isso assusta pela autenticidade. A minha poesia, apesar de toda a violência e desamparo convocados pelas imagens, talvez seja menos assustadora, acho eu, na relação com a obra de Paula, na medida em que ora converge, ora diverge, ora se aproxima, ora se distancia dela. Apesar da solidão, creio haver nela um desejo de sublime. «Nós/Nudos» é um lugar não imune ao pesadelo, nem ao êxtase. Nada está parado. Perder essas duas dimensões é perdermo-nos.

M.J.C. – Sim, uma ameaça permanente parece pender permanentemente sobre a sua poesia. Concorda?

A.M.G. – É a ameaça da incompletude, da impossibilidade, da morte.

M.J.C. – Consideremos outro aspecto. A sua poesia é uma voz isolada no que se vai fazendo actualmente. Como se definiria no quadro das vozes poéticas actuais portuguesas? Acha que se pode falar de um lirismo no seu caso? E em que sentido?

A.M.G. – Mas quem sou eu para definir a minha voz poética? Concordo que há um isolamento, isso sim. E não receio o lirismo, sem derramamento, um lado elegíaco, mais atenuado neste livro que me desarruma, de alguma forma. Não deixa de existir um certo desconcerto metafísico, uma consciência da limitação, a dificuldade em lidar com o que é incompreensível, o nomear de uma necessidade vital, a da escrita que se abeira do abismo para se encontrar num voo. Vivemos num mundo de catacumbas, o poema não as ignora. Não sei pensar sem ele.

M.J.C. – Coloca uma questão interessante: a relação da poesia com a metafísica. Que espécie de aproximação é a da poesia ao pensamento? É possível pensar através da poesia?

A.M.G. – A metafísica e a poesia são impertinências que lidam, na minha opinião e em determinados contextos, com a angústia. Se a Filosofia pergunta e a poesia responde, como escreveu María Zambrano, a verdade é que entre ambas pode existir uma contaminação, embora não sempre. São ambos vítimas do sentido da vida, o filósofo e o poeta. No caminho da palavra, às vezes encontram-se.

M.J.C. – Retomando, ainda, o quadro em que se insere, tanto a obra de Paula Rego e o universo da sua poesia, eu insistiria que ambas se centram no universo feminino, no que ele contém de mais ancestral. Não é um universo pacífico, esse, como a tradição se habituou a ver, mas marcado pelo jogo de poder, de relações. Em que medida os seus poemas se entrelaçam com essa visão de Paula Rego?

A.M.G -  Nós» é escrito por uma mulher sobre obras de uma outra mulher que, por sua vez, se debruça sobre o mundo das mulheres. De que modo decifram as mulheres a vida, pensada, durante séculos, por meio do olhar masculino? Não sei. Qualquer uma das visões, masculina ou feminina, são amputadas, por vezes deformadas, privadas uma da outra. Somos incompletos e certamente insectos que se movem nas teias do poder. Há relações desse tipo na obra da Paula, como nos meus versos. No caso da sua pintura, elas assumem diversas formas, as da criança dominada pelo pai ou pela mãe, ou pelo(a) professor(a); as da mulher pelo marido ou pelo amante, do indivíduo pelo Estado, da personalidade pela paixão ou da consciência pela culpa. No meu caso, existem leituras próximas desses universos, mas também longínquas. Talvez estas últimas sejam mais frequentes. Os meus poemas e as imagens de Paula Rego correm solitários, mas «brincam» uns com os outros, conscientes de que há sempre algo intransponível entre textual e visual e, por isso, da ordem do invisível, do misterioso.

 

M.J.C. -  Mas existe na sua poesia uma dimensão de ternura que atenua e ameniza o “choque” provocado pela obra pictórica de Paula Rego. Isso é intencional? Ou é algo que decorre da sua própria experiência poética?

A.M.G – Ah, sim, eu deixo entrar no poema essa dimensão, não de uma forma intencional. Faço a fuga ao terrífico pelo lado da procura do sublime, pedindo ao amor que opere na sua essência escassa e preciosa. O sublime é o único furto legítimo. De qualquer forma, os meus poemas nunca são legendas dos quadros da Paula, por vezes podem entender-se mesmo como uma forma de resistência -­ até pela necessidade de uma libertação - à violência que deles emana. E não é a ternura a compaixão pela indestrutível solidão do Outro?