Do assombro lírico
Sentas-te na sombra e sabes
que apenas o crepúsculo acalma
a tua urgência, a tua sede de chuva
e do avesso das coisas
e da noite o assombro
o desvario de palavras,
essa urgência que rasga o real
uma garra de nada, uma pedra
no teu caminho.
E procuras o escopro,
o arado alquímico, o compasso
e o ritmo matemático do verso,
esse golpe certeiro e lírico,
essa asa de sonho que implode a vida
e varre a melancolia,
o estremecimento mínimo.
O poema nasce
com a sua luz de abismo
irrecusável.
Irmãos da Luz
Somos irmãos da luz
e bebemos o sonho
como quem nasce da água
bebemos a voz
que desce da noite.
Somos irmãos da terra
cantamos
e dançamos o fogo
olhamo-nos como espelhos
tememos as palavras dos homens.
Somos da sombra os nomes
lavrados no silêncio
apascentados na alba
e tudo nos habita:
lua, passagem, círculo.
Somos irmãos da escuridão
olhamo-nos como espelhos
dessa luz íntima e sonhante
na dobra do poema.
Seguir o passo lento
Seguir o passo lento dos animais
o seu ritmo milenar
a respiração das areias
e do vento, na senda dos nómadas,
caminhando por entre
dias e noites, sonhando linhas
de oásis e sombra.
E, página a página, se escreve
esta luz, voz imemorial,
seguindo o passo dos animais
escutando o coração das estrelas,
caminhando no vazio do horizonte.
E, linha a linha, como um rio
de um caudal, onde transborda o leito,
escreves, revirando a noite,
procurando espelhos, convocando sombras,
nesse oásis que é caminho e muro,
buraco e precário limiar,
na senda de Juan de la Cruz,
do persa Rumi, de Eckart
e de todos os famintos
de luz e de salvação.
O olho animal aguarda-te.
A publicar brevemente, in Do Ínfimo
