Vasconcelos, Helena, Humilhação e Glória, editora Quetzal, textos breves, Lisboa, 2012.
Em 2009, Helena Vasconcelos surpreendeu-nos agradavelmente com o ensaio, A Infância é um Território Desconhecido. O território da infância, tão mal conhecido (e infantilizado), foi o seu objecto de investigação. O livro, se bem se lembram os seus leitores, foi discretamente recebido, apesar da quase inexistência, em Portugal, de literatura relativa ao tema. Espero que, desta vez, tal não se repita.
Helena Vasconcelos é sobejamente conhecida pela sua actividade intensa, enquanto jornalista, crítica, leitora universalíssima e grande promotora da leitura, marcando presença assídua em comunidades de leitura que tem orientado. A sua escrita revela bem a sua erudição e cultura literária, facto que não é, aqui, de menor importância, aliando-se a um despretensiosismo e a uma recusa de certo academismo que grassa no ensaísmo português.
Na sua “Nota de Autora” (p. 315), Helena Vasconcelos revela exactamente as razões que motivaram o seu ensaio: “Não tenho a intenção de depositar nos vossos braços e perante os vossos olhos um «Tratado» exaustivo sobre as mulheres e gostaria que esta obra fosse lida (quase) como uma «narrativa de aventuras» e não como uma peroração académica. Espero sinceramente que as alusões a tão diversas figuras femininas – das muito conhecidas às quase desconhecidas – sirvam para «abrir o apetite» a quem, melhor do que eu, poderá tratar, com erudição e detalhe, a vida e a obra de qualquer delas.”
Não é um tratado sistemático que está aqui em causa, mas uma abordagem polifacetada, que percorre os vários períodos da nossa história, das figuras femininas que a marcaram e, em muitos casos, a revolucionaram. E o valor da sua obra é precisamente o de chamar a atenção para figuras históricas femininas que marcaram a diferença e se afirmaram perante um universo cujo poder era eminentemente masculino (e que se sentia ameaçado pela força destas mulheres), através da sua existência e atitude, nas épocas em que viveram. Estas mulheres fortes, indomáveis e obstinadas de que a autora nos fala pertenceram aos mais variados quadrantes, da política, à ciência, da literatura à música e às artes.
A introduzir a obra, a autora escreve um longo capítulo, o segundo do livro, intitulado “Estudos Femininos”. Para o leitor que não se encontra familiarizado com o tema ou que apenas conhece algumas referências neste domínio, esta pequena introdução pode ser muito útil, permitindo o aprofundamento do tema a quem interesse. É importante assinalar a existência de estudos sobre a mulher que tem sido levada a cabo no nosso país por investigadoras de reconhecido mérito, tais como Irene Flunser Pimentel, Isabel Allegro, Ana Vicente, Inês Pedrosa, Maria Belo, Teresa Almeida, Teresa Joaquim, Filomena Mónica, Anália Torres, Maria Alfreda Cruz, Manuela Carvalho, Maria José Maurício, Isabel Lousada, Júlia Coutinho, entre muitas outras. Se os «estudos femininos» já conhecem uma bela e vasta expressão no estrangeiro e, sobretudo, nos países anglo-saxónicos, nomeadamente a partir de 1970, só recentemente se desenvolveram no nosso país e estão em larga expansão. A revista “Eva”, da Universidade Nova de Lisboa, tem proporcionado o decisivo impulso nesta área.
No ano passado, precisamente na data em que se assinalou o «Dia da Mulher», o editor João Carlos Alvim organizou uma jornada sobre o tema, em que estiveram presentes algumas destas estudiosas que já aqui foram referidas, perante uma assistência numerosa e interessada. Este interesse, embora tardio, é muito positivo e mostra como as mulheres portuguesas se afirmam cada vez mais no sentido de compreenderem claramente a sua responsabilidade social, contribuindo activamente e participando na sociedade, em todos os seus quadrantes. Se o ano de 1971 assinala o escândalo da publicação de As Novas Cartas Portuguesas, da autoria de Maria Teresa Horta, Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, percebemos claramente o avanço que as mulheres têm tido em Portugal, sobretudo a partir da Revolução de 1974. Lembro-me, ainda, de uma entrevista que fiz a Maria Teresa Horta, mulher de extraordinária coragem, em que a escritora e poeta me contou como havia sido espancada na sequência desse acontecimento e de outros, ligados à história da emancipação feminina, de que ela foi uma das grandes protagonistas.
Curiosamente, se à época da implantação da República, as mulheres portuguesas conquistaram algumas vantagens e poder na sociedade, o salazarismo e o seu cinzento e limitado programa de “Lar, Pátria e Autoridade” remeteram as mulheres portuguesas para segundo plano, “induzindo-as” a aceitar o seu papel de fada do lar, passiva e dominada pela cultura masculina. Nas classes mais privilegiadas, além de dominada, converteu-se também num “objecto estético” e inútil, remetida às suas funções de esposa e mãe de família, de forma a não provocar grandes convulsões no universo masculino. Todavia, houve mulheres, e Helena Vasconcelos salva-as do esquecimento, que afrontaram os cânones estereotipados e as convenções sociais, nas mais diversas áreas, desde a literatura, às artes e à ciência. Já sem falar das mulheres que combateram corajosamente o regime, nas fileiras da oposição comunista.
No terceiro capítulo, que se intitula “Mulheres e Cidadãs”, Helena Vasconcelos parte da Antiguidade Clássica, analisando a cultura grega e romana, e as convenções relativas a essas civilizações, que reservavam para a mulher uma função muito redutora e limitada. Excluídas do acesso à cultura e à educação, afastadas da vida pública, as mulheres gregas e romanas contrastavam com as etruscas, cuja liberdade era tal que os homens gregos chegavam a apelidar as prostitutas de «etruscas». Estas podiam partilhar os esposos (segundo o testemunho de Theopompus de Chios) e participavam dos banquetes e da vida pública.
A autora dedica uma extensa parte da sua obra às «Mulheres de Letras», sobretudo às escritoras anglo-saxónicas que lhe são muito familiares, no capítulo quarto. Desde a Idade Média aos dias de hoje, ainda que o índice de alfabetização e de cultura fossem notoriamente baixos, houve, no entanto, exemplos de mulheres (muitas das quais nos conventos, onde eram postas pelas famílias) que se salientaram pelas suas capacidades, pela sua cultura e erudição. Houve ainda outras, nobres e que tinham acesso ao estudo, bem como as notáveis Eleanor de Aquitânia e a sua filha Marie de Champagne, que contribuíram, não apenas para uma viragem da História da Literatura, como da própria História dos costumes, revolucionando-os, promovendo o «amor cortês» e a poesia trovadoresca. Durante o século XII, pasme-se, houve uma grande mudança nos costumes e nas artes, com o aparecimento das primeiras universidades – de Coimbra, Bolonha, Salamanca, Paris, Oxford -, em que as mulheres podiam participar activamente da vida cultural. A lendária Eleanor de Aquitânia, além de reconhecida erudita, tornou-se uma aguerrida guerreira que acompanhou a 2ª cruzada à Terra Santa. Também não faltaram exemplos em Portugal de rainhas e nobres letradas, na época da poesia trovadoresca, sobretudo a rainha Santa Isabel, notada pela sua cultura, erudição e sentido de justiça.
O facto de a nossa história não reconhecer a importância das mulheres, porém, não significa que tivessem faltado exemplos, tais como Joana Vaz, Paula Vicente – filha de Gil Vicente - , Leonor Coutinho, Ângela e Luísa Sigeia (irmãs), Públia Hortênsia de Castro, entre outras, que se distinguiram nas Letras. Para «ludibriar» o sistema, que não lhes permitia a entrada nas universidades e na vida pública, vestiam-se de homens. O mesmo faziam as mulheres que partiam para a guerra, ao lado dos homens, e nas caravelas, usando de astúcia bem feminina.
No século XVIII, as mulheres que possuíam dinheiro e uma certa posição social, conheceram alguma liberdade e importância. É, aliás, sabido, que o século XVIII permitia às mulheres uma liberdade maior que às suas sucessoras do século XIX, mais espartilhadas pelas convenções sociais e pela prepotência masculina e que apenas as valorizava enquanto «fadas do lar». Se a francesa Madame de Stäel (1766-1817) se tornou célebre, não lhe ficou atrás a Marquesa de Alorna (1750-1839), natural de Lisboa e neta dos Távoras. Maria Teresa Horta escreveu recentemente uma biografia magnífica sobre a marquesa, intitulada As Luzes de Leonor.
Já o século XIX, como o reconhece Helena Vasconcelos, foi “pernicioso e, em muitos casos, devastador para as mulheres.” (p. 1.58) O romantismo, fazendo passar a ideia da mulher frágil e instável, caprichosa, remeteu as mulheres para um estatuto de «deusas», de mães intocáveis, que muito convinha ao universo masculino, enclausurando-as. Não faltam exemplos, na História da Literatura, sobretudo nas anglo-saxónicas, de mulheres que se isolavam a si mesmas (ou eram isoladas pelos pais).
O século XX veio trazer às mulheres a sua afirmação, pouco a pouco, permitindo que elas trabalhassem ao lado dos homens. Conquistando paulatinamente a sua liberdade, elas beneficiaram do acesso à educação e à cultura, que não tinham anteriormente. E actualmente, como se sabe, a grande maioria dos alunos universitários são mulheres conscientes do seu papel na sociedade e da sua importância, não apenas como esposas e mães, mas igualmente no mercado de trabalho e na sociedade, participando activamente e conciliando as suas múltiplas tarefas. A par dessa ascensão social e do seu estatuto, dá-se também a sua emancipação. E Helena Vasconcelos cita os casos numerosos de mulheres que marcam irreversivelmente a nossa contemporaneidade, quer nas Letras, como nas Artes e nas Ciências. Se, em certas áreas, como a Política e na Gestão e Economia, elas ainda não encontraram a paridade com os homens, tal dever-se-á à falta de estímulo que encontram nelas e não no impedimento masculino. O facto de serem mães e a necessidade de conciliarem a maternidade com o trabalho não lhes facilita a entrada no universo dos negócios, da Banca e das Finanças, onde a maternidade ainda é vista como um obstáculo na carreira. Nas outras áreas, porém, é extraordinária a sua presença, como o é na literatura actual (tomem-se os casos de Agustina, Hélia Correia, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Teresa Salema, Teolinda Gersão, Luísa Costa Gomes, Dulce Cardoso, Maria Gabriela Llansol, Cristina Carvalho, Ana Teresa Pereira, Luíza Neto Jorge, Natália Correia, Inês Pedrosa, Patrícia Reis, entre muitas outras, pois a lista já vai extensa), nas Artes (Paula Rego, Maria Vieira da Silva, Helena Almeida, etc.) e nas Ciências, território que tem vindo a revelar-se muito bem representado pelas mulheres.
Gostaria de ver um capítulo consagrado (mas exprimo aqui um desejo, apenas) às mulheres da filosofia e do pensamento que, talvez por serem muito conhecidas, ficaram de fora, como Hanna Arendt ou Lou Salomé, ambas admiráveis. Lou Salomé, pela forma como apoiou e muito provavelmente terá impulsionado a obra de autores como Nietszche, Rilke e Freud, Arendt pela proeza de se ter tornado a primeira mulher a leccionar numa faculdade americana, além do mérito próprio.
É esta a grande qualidade de Humilhação e Glória: a de render justiça a uma área de estudos muito recente e ainda pouco explorada em Portugal, a dos Estudos Femininos. Fora de Portugal, estas investigações encontram-se muito desenvolvidas e há que recuperar o atraso que levamos. E se o livro desta autora não deve ser entendido, como ela própria o diz, como um “Tratado exaustivo”, contribui indubitavelmente para estimular os estudos femininos no nosso país. Por último, a obra de Helena Vasconcelos é uma belíssima homenagem às mulheres, escrita com uma paixão bem feminina e uma sensibilidade extraordinária. As mulheres agradecem-lhe, naturalmente.
Maria João Cantinho