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Maria João Cantinho



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À Conversa com Maria Teresa Horta

09-06-2015 00:12

            Jornalista, poeta, ficcionista e figura incontornável da cultura portuguesa, Maria Teresa Horta manteve durante toda a sua vida uma atitude ousada e firme, em todas as frentes. Lutadora incansável em prol dos direitos femininos, a par de um intenso combate pelas mulheres portuguesas, construiu, ainda, uma obra vasta no campo da poesia (19 livros) e da ficção (6 romances e diversos contos) portuguesas, tendo marcado decisivamente as gerações de 60 e 70 em Portugal. Figura polémica, chocou a sua geração e a opinião pública com a sua poesia erótica e ousada, tendo sido uma das três autoras, juntamente com Maria Isabel Barreno e Maria Velho Velho da Costa, das “Novas Cartas Portuguesas” (1971).

            Da sua vida e obra nos fala Maria Teresa Horta, com a serenidade e o olhar lúcido e frontal de sempre, desmascarando a hipocrisia e os preconceitos que marcaram a sua época, revelando o seu carácter indomável e a imensa força que se esconde nesta mulher de aspecto frágil, com olhar de espanto sobre a vida.

M.J.C.  –  Estreou-se na poesia em 1960, com “Espelho Inicial”. Como revê essa década de 60, tão importante na poesia portuguesa?

M.T.H  -  Para mim foi uma década de permanente descoberta. De deslumbramentos, de criatividade intensa: verso após verso, poema em poema, trepando, mergulhando e logo subindo, buscando em meu redor e dentro de mim mesma. Querendo experimentar, tacteando à volta, caldeando com a dúvida o que já sabia ou intuía, misturando o susto com a alegria e com a viagem interior. Foi, também, uma época de encontro com outros escritores, outros poetas, escuta de diversas vozes, de novas propostas poéticas. E igualmente com a pintura: misturando as cores e os versos; distribuindo a púrpura, o rubro, pelo interior das poesias, assim como o azul-cobalto e o carmim no corpo das palavras. Um corpo táctil, erógeno, de prazeres intensos. Desse modo, testava os sabores, os odores, na temperatura vertiginosa da escrita, fazendo-a explodir de desejo. Desejo ostensivamente feminino, vindo das suas raízes e da sua estrutura interna.

M.J.C. –   Lembro Octávio Paz, dizendo na sua obra “O Arco e a Lira” que a poesia era também um produto social, jamais poderia ser dissociada da sua época e do seu tempo, sobretudo da história. Em que medida se entrosaram, na sua obra, esses elementos?

M.T.H.  –   Claro que a poesia é, também, um produto social, nunca dissociada do seu tempo e até do seu meio, e na poesia que tenho vindo a fazer esse facto parece-me ser por demais evidente. Apesar de isso ter acontecido (e continuar a acontecer), sobretudo pelo seu próprio avesso. Ou seja, tendo parte da minha poesia sido escrita (período entre 1960, início de 1970) sob um regime fascista, que proibia tudo, começando pela liberdade e pela ousadia, em vez de ela se deixar tolher, amedrontar, acontecia que, naturalmente, explodia, ousava, reclamava-ardendo. Desafiava. Desobedecia. Minha Senhora de Mim é o exemplo mais cabal dessa atitude, que acabou por desencadear da parte do governo, dos censores, da PIDE (e não só... também da burguesia bem pensante da altura), drásticas atitudes repressivas em relação a mim e a tudo o que escrevia, enquanto escritora, poetisa, e enquanto jornalista. O que, de imediato, desencadeou da minha parte, em vez de um recuo, uma tentativa de ir ainda mais longe, quer a nível temático, quer a nível da linguagem, que na altura nenhuma mulher usava. Posso dar como exemplo disso Educação Sentimental, escrito já depois de proibição de Minha Senhora de Mim, durante o processo e julgamento de Novas Cartas Portuguesas.

M.J.C. –  Como foi possível a publicação de Minha Senhora de Mim ou de Novas Cartas Portuguesas naquela época?

M.T.H. –  Só foi possível porque não havia censura prévia, no que dizia respeito à edição de livros. A proibição vinha depois... aliás, como aconteceu. Mas aconteceu mais: o Moreira Baptista, então secretário de Estado da Informação e Turismo, chamou a Snu Abecassis, dona da Dom Quixote, onde Minha Senhora de Mim tinha saído, e disse-lhe que se voltasse a publicar outra obra minha mandaria fechar a editora. No que diz respeito a Novas Cartas Portuguesas foi diferente. Quando eu, a Maria Isabel Barreno e a Maria Velho da Costa demos o livro por terminado, tínhamos já três ou quatro editores que se propunham editá-lo, mas ao lerem o original tiveram medo e deram o dito por não dito. Apenas restou a proposta da Natália Correia, então directora literária de “Estúdios Cor”. E acabou por ser ela que, corajosamente, fez ponto de honra em publicá-lo.

M.J.C. – Que consequências lhe trouxe a ousadia de publicar um livro erótico feminino, num país em que o erotismo constituia um território do homem?

M.T.H. – Para além da proibição da PIDE e das ameaças políticas, criou-se uma efervescente celeuma em torno de Minha Senhora de Mim. As ameaças e os telefonemas insultuosos para minha casa sucederam-se, a ponto de ter de mandar tirar o meu nome da lista telefónica. Houve, também, bilhetinhos, convites insidiosos para sair à noite, para jantar, etc., enviados por homens que não conhecia. Enfim, gerou-se todo um clima de mal-estar à minha volta, que, insidiosamente, mais parecia pretender atemorizar-me, castigar-me... Pior do que isso: envergonhar-me! Afinal, como me chegaram a dizer, “uma mulher de respeito não escrevia daquele modo, não dizia aquelas coisas...”

M.J.C. – Qual o impacto que teve, sobre a sociedade portuguesa e sobre as mulheres portuguesas, em particular, o vosso julgamento, aquando da publicação das Novas Cartas Portuguesas?

M.T.H. –  Bem, digamos que teve pouquíssimo impacto, a não ser a nível dos escritores, pois na altura havia censura prévia que, implacável, pesava sobre os jornais e jornalistas. Isto quer dizer que qualquer notícia, artigo, reportagem, que dissesse respeito a Novas Cartas Portuguesas, eram cortados. A esmagadora maioria das pessoas nem sabia do nosso julgamento. Ao contrário do que acontecia no estrangeiro, onde se falava muito do caso, se faziam manifestações, marchas, acontecendo mesmo a ocupação da embaixada portuguesa na Holanda pelas feministas holandesas.

M.J.C. – Quem foi capaz de as defender?

M.T.H. –  Para além dos advogados, os escritores. Não esquecer que sob a capa de um processo por atentado à moral pública, estava evidentemente um processo político. E os escritores portugueses conheciam, sabiam isso. 

M.J.C. –  Quando inicia a sua luta feminista? Conta, em várias entrevistas, que começou por assistir, em menina, a reuniões de sufragistas. Mas em que momento nasce a feminista?

M.T.H. – Digamos que a feminista nasceu muito cedo. Desde o momento em que, “apesar” de ser uma menina, ou por isso mesmo, comecei, dentro da família, a reclamar, a perguntar, a recusar-me a cumprir determinados papéis, que achava por demais penalizantes, limitativos do meu dia-a-dia.  Por isso a família sempre me achou desobediente, difícil. Logo, castigável. Quando a minha avó me levava com ela às reuniões de mulheres na Casa Jardim, ainda bem mais pequena, recordo-me vagamente das muitas mulheres que, sentadas numa sala, falavam umas com as outras, muito sérias e ardorosas. No fim tomavam chá, davam-me doces e chocolates, que eu mal comia, “bicho do mato”, como me então chamavam. Digamos que foram as minhas “fadas-madrinhas” do feminismo... A Maria Lamas era uma delas, e foi quem me contou, já no fim da sua vida, a importância dessas reuniões, de que eu tão mal me lembrava.  Quanto à minha luta feminista activa, digamos assim (nunca me entendi enquanto uma militante nata, mas sim como uma escritora independente), começou no dia em que foi lida a sentença das Novas Cartas Portuguesas. Logo depois houve o primeiro encontro para se estruturar o Movimento de Libertação das Mulheres (MLM).

M.J.C. – Houve adesão por parte de quem?

M.T. H. – Ao MLM aderiram, de uma maneira geral, mulheres da média burguesia, entre os vinte e os quarenta anos. Foram tempos difíceis, embora também de grandes entusiasmos. Tinhamos consciência de estar a criar algo de novo em Portugal, um país tradicionalmente machista, particularmente marialva, onde as mulheres continuavam a ser tratadas como seres de segunda e terceira. Pessoalmente, dividia esses meus dias cheios de entusiasmo, entre o meu filho pequeno, a minha escrita e a participação na luta pela libertação das mulheres. Mas, foram também tempos de agressividade e mesmo de violência, que caiu sobre as feministas. Lembro o que aconteceu quando o MLM organizou uma manifestação no Parque Eduardo VII, a única que na altura foi impedida de se realizar pelas centenas de homens que apareceram para a boicotar, apalpando as manifestantes, agredindo-as, insultando-as. O jornal Expresso dera a notícia de que as feministas iam fazer “strip-tease”, e queimar soutiens, o que era totalmente mentira. No entanto, essa é uma ideia que hoje se mantém, apesar de inúmeras vezes desmentida. Houve ainda outras perseguições, que cairam particularmente sobre mim.

M.J.C. – E as perseguições deviam-se a que acusações?

M.T.H. –  Acusavam-me de ser exactamente como era. Ou seja, de nunca me calar, de pôr os "pontos nos is", de dizer o que as mulheres tinham sido sempre obrigadas a calar. E também, calcule-se, “de ter o descaramento” de fazer poesia erótica, vertente da literatura que mais parece uma coutada literária masculina. Portanto, a que apenas os homens tinham acesso por direito próprio.  Por tudo isto, três portugueses, másculos e viris, fizeram-me uma espera, à noite, à porta da minha casa, e espancaram-me, a ponto de ter de dar entrada num hospital.

M.J.C. –  A sua carreira literária não sofreu por causa desses acontecimentos? Que consequências teve para si?

M.T.H. –  Claro! Foi mesmo a minha carreira literária a mais prejudicada com estes acontecimentos. Os preconceitos sexistas vieram todos ao de cima, e enquanto escritora, enquanto poetisa, comecei a ser marginalizada, esquecida, silenciada, posta de lado. E não nos podemos esquecer que a própria poesia erótica feminina discredibiliza. Aquela que a faz irrita os críticos, incomoda aqueles que impõe “as leis” da escrita, os donos bem-pensantes das multiplas capelinhas literárias.

M.J.C. – Isso foi antes ou depois da entrada no Partido Comunista?

M.T.H. –  Foi antes, mas de certa forma tem-se mantido até hoje. Aliás, o ter pertencido durante catorze anos no PCP, contribuiu, na altura, ainda mais para essa marginalização, para esse ostracismo. Esse voluntário esquecimento.

M.J.C. –  O que a fez abandonar o Partido Comunista? Foi um processo doloroso, ao fim de 14 anos?

M.T.H. –  Abandonar o Partido Comunista foi um processo muito doloroso, que penosamente se prolongou, ao longo de dois longuíssimos anos. Hoje, quando recordo esse tempo de desencanto crescente, vejo-me frente à utopia caída por terra, teimando e teimando em salvá-la, desse modo querendo salvar junto o sonho da liberdade, tal como a tinha entendido até aí.  Recusava-me a aceitar, também, que dentro do PCP nada pudesse ser feito contra a intensigência, a intolerância, a mentalidade retrógada, limitada, o moralismo mesquinho,  ignorante. Assim como a tentação da censura... Não esquecer, que na altura eu era chefe de redacção da revista “Mulheres”, que pertencia ao Partido Comunista. 

M.J.C. –  E o hiato que houve na sua escrita, entre 76 e 82, correspondeu à intensidade e à entrega militante? Sobrepuseram-se à escrita?

M.T.H. –  Esse hiato, esse espaço vazio, em branco, na minha escrita, foi devido não à intensidade da entrega militante (para dizer a verdade nunca fui uma militante entusiasta), mas sim, como diria Rosa Montero, devido a um longo período de seca. Como se o sonho banalizado pela realidade, tivesse secado dentro de mim, fazendo recuar a poesia. Aterrada, vi-me pela primeira vez (depois de em menina ter aprendido a escrever) sem escrita criativa. Recorri, então, à psicanálise, para tentar comprender o que se passava, e menos de um mês depois voltava de novo a escrever. Estava de volta à vertigem, ao incêndio, que é para mim o imaginário poético. Ou seja: reencontrava-me intacta, através da poesia.

M.J.C. – Guarda algumas recordações positivas desse tempo?

M.T.H. –  Do tempo de deserto, sem a palavra escrita (aos nove anos fiquei um longo dia sem a palavra oral), recordo a sede gélida, a ausência de chama, a sombra de mim mesma na qual me tornara. Mas, dos primeiros tempos dos dezassete anos de psicanálise, recordo a viagem, o retomar de uma memória com a humidade da cisterna, recôndita. A descoberta vertiginosa, o punhal cravado no sítio do coração, e simultaneamente, um desmesurado prazer intenso. Da queda mas também do voo, do recuo seguido da entrega. Se me pedissem duas palavras para definir esses meses, diria: intensidade, criatividade.

M.J.C. –  A escrita é, para si, uma catarse? Ou é, antes, um sofrimento? Lembro-me de ter dito um dia que “escrever era como um acto sexual”. Ainda a entende assim?

M.T.H. –  Sofrimento? Nem pensar! Eu não faço o género do escritor sofredor. Para mim, a escrita é um prazer intenso, avassalador. Não sei se será uma catarse, mas é seguramente sexual. Possui a mesma vertigem e o mesmo tipo de desejo que pulsa e empurra, excessiva, na direcção da plenitude e da queda. Escrever acelera-me o pulso, faz-me voar o coração, consciente, embora, de  todas as partes do meu corpo.

M.J.C. –  É mais conhecida pela ousadia da sua poesia erótica, mas há também a ficcionista, que escreveu obras como Ambas as Mãos Sobre o Corpo (1970), Ema (1984) ou ainda A Paixão Segundo Constança H (1994). Como convivem poeta e ficcionista? São respirações completamente diferentes, não acha?

M.T.H. –  A poetisa convive optimamente em mim com a ficcionista. Digamos que as duas partilham em harmonia o meu imaginário: o espaço diurno, solar, cintilante, para a poesia (erótica ou não), o espaço nocturno, fantasmático, pulsional, para a ficção. Respirações diferentes, sim, mas que, aqui e ali, também se misturam, se fusionam, se completam, e portanto, mutuamente se enriquecem, permitindo-me chegar mais além, descer mais fundo. Voando, mergulhando.

M.J.C. –  Na sua escrita, lembro sobretudo Ema e A Paixão Segundo Constança H, a presença da loucura é constante. Porquê esta relação do feminino, da mulher, com a loucura?

M.T.H. –  Perguntei um dia a Marguerite Duras, se a criança era louca, e ela respondeu-me: “Não. A mulher, sim, é a loucura.” Loucura essa que em si mesma desafia, salva e condena. Génese feminina, matricial e inalcançável, que a sociedade- porque lhe escapa, a perturba, a desordena-, sempre condena e castiga. E por isso mesmo a amordaça, a fez arder em fogueiras, ou ainda hoje interna em hospitais psiquiátricos. Como aconteceu, por exemplo, às escritoras Emma Santos, Sylvia Plath, Janet Frame, Violette Leduc, Zelda Fitzgerald, à escultora Camille Claudel, à feminista Kate Millette. A  relação mulher-loucura não sou eu que a invento, a sociedade é que tem vindo a relacioná-las, usando a loucura como pertexto para manietar a mulher, sempre que ela se ergue igual a si mesma e por isso diversa; recusando cumprir estereotipos, negando-se a repetir papeis ancestrais que a diminui, a ensombra e desfigura, preferindo expor a sua diferença e dessa maneira fragilizando-se.

M.J.C. –  Foi isso que pretendeu mostrar com Ema?

M.T.H. –  Sim, com Ema falo exactamente dessa diferença, que pode ser interpretada como loucura. Ou se preferir, mostro a loucura da mulher enquanto passagem do feminino de mãe para filha, da passagem de testemunho de geração de mulheres submetidas, a geração de mulheres que se querem diversas, mas que permanecem ensombradas, não sabendo usar a própria identidade. Vi mais de uma vez a minha mãe ser internada à força, li os diários dilacerantes de Violette Leduc, de Janet Frame, os textos de Sylvia Plath, de Emma Santos, e as cartas de Camille Claudel... Será possível esquecer: as suas palavras gritadas, o olhar apavorado da minha mãe?

M.J.C. –  Outra fonte matricial, tanto da sua poesia, como da sua ficção, é o tema do desejo, que surge, sempre, associado a transgressão, a ruptura. Tem alguma dívida para com Marguerite Duras?

M.T.H. –  Tenho para com Marguerite Duras uma dívida de sangue, que são todas as dívidas literárias. Assim como ler aos 15 anos Le Deuxiéme Sexe de Simone de Beauvoir, modificou aquela que iria ser a minha vida, o meu trajecto futuro, ler Margurite Duras no princípio da minha idade adulta, e, mais tarde ,conhecê-la pessoalmente, mudou o futuro da minha escrita. Depois de passar por uma e por outra, nada poderia ficar igual. 

M.J.C. –  Fala de Marguerite Duras, como escritora, ou de Beauvoir como pensadora, mas eu acrescentaria a Simone Weil, Hannah Arendt ou, ainda Rosa de Luxemburgo, exemplo avassalador de coragem. Estas mulheres racionais e inquebrantáveis não a influenciaram?

M.T.H. –  Nenhuma delas me influenciou especialmente. Simone Weil menos do que Hannah Arendt, de quem admiro a habilidade ardilosa com que conseguiu contornar o poderoso pensamento masculino, para livremente e solitária, poder arquitectar o seu. Dentro do possível, tentando branquear as referências impositívas e castradoras, aniquiladoras de Heidegger, com quem manteve, durante longos anos, um ambivalente relacionamento amoroso. Quanto à avassaladora coragem de Rosa de Luxemburgo, que refere, sinto-a bem mais distante do que a coragem incendiada e incendiária de Mary Wollstonecraft, que na última metade do século XIX, escandalizou ao contrapôr, precisamente, o pensamento masculino ao feminino, sistematizando-o. Prefiro, também, a serenidade teimosa de Christine Pizan, que em pleno século XV marcou a diferença do pensamento e da escrita feminina. Elegantemente, trocando as voltas àqueles que a quizeram expulsar da intelligentzia da sua época, de que foi um marco luminoso.

M.J.C. – E o que me diz da determinação, da liberdade de pensamento da Marquesa de Alorna?

M.T.H. –  Bem, a marquesa de Alorna é, para mim, uma referência apaixonada. Minha génese, raiz de que tanto me envaideço, neta tentando perseguir-lhe os passos, as pistas, buscando-a que ando há seis anos a esta parte, ao longo da última metade do século XVIII e da primeira metade do século XIX (1750/1839), para a poder trazer até à  minha ficção. Tentando entender-lhe mais do que o trajecto, a presença impositiva, o veemente pensamento, afinal sempre contraditório, mulher dividida que foi, ao longo de toda a sua longa vida, única mulher das luzes, de nacionalidade portuguesa.

M.J.C. –  Acha então que se pode falar de um pensamento feminino, de uma escrita feminina, hoje em dia? Se Susan Sontag fosse um homem escreveria do mesmo modo? Podemos pôr essa hipótese, para recolocar a questão.

M.T.H. –  Acho que de facto se pode falar de um pensamento, assim como de uma escrita feminina. Gostaria, a propósito, de citar Annie Leclerc, quando em Parole de Femme refere uma “literatura feminina, bem feminina, de uma estranha sensibilidade feminina”, e Virginia Woolf em Um Quarto Que Seja Seu: “Seria de lamentar se as mulheres escrevessem como os homens.” Quanto a Susan Sontag, não posso provar  que escrevesse do mesmo modo se fosse um homem, no entanto sei que não escreveria o que escreve, porque então não seria ela e sim ele. Alguém resultante, produto de experiências e educação diversas. Provavelmente, sem o rasgo, sem o fulgor que dela se solta e me fez estacar, siderada, frente à sua espectacularidade, ao seu fogo, quando nos conhecemos durante um grande encontro de mulheres feministas a decorrer no México, onde ficámos quase todas perto de um mês, passeando. Lembro uma longa conversa que tivemos, durante um relutante crepúsculo, fim de tarde, ali, sempre desesperantemente lentos, garantindo-me ela estar cada vez mais convicta da existência de um pensamento feminino, imbuído de um enorme potencial de mudança.

M.J.C. –  E referindo o pensamento das mulheres da nossa época, identifica-se mais com quem?

M.T.H. –  Da nossa época, identifico-me com o pensamento desassombrado de Kate Millett, ou com a melancolia ardorosa de María Zambano. Com a inteligência desassossegada e inovadora de uma Elisabeth Badinter ou com o pensamento rebelde e  criativo de Susan Sontag.

M.J.C. –   Para concluir, fale-nos desse novo projecto que tem entre mãos, sobre a Marquesa de Alorna. É um romance? Uma biografia romanceada?

M.T.H. –  Há seis anos que o venho escrevendo como um romance. Texto que, embora partindo da vida de Leonor de Almeida Portugal (Marquesa de Alorna ou Alcipe), não se quer sua biografia em quase nada, sendo-o todavia em quase tudo o que a ela diz respeito. Trajecto invulgar de uma mulher das luzes, dividida entre o coração e a razão, e sem dúvida, também, entre a poesia e o político. Teimosamente impondo-se, desafiando sempre. Mas entre mãos tenho também um livro de poesia, “Inquietude”, praticamente pronto, a enviar para a editora. E tantos outros livros e projectos que voam dentro da minha cabeça... Brigando com o espaço e o tempo que Leonor teima em continuar a ocupar, no meu dia a dia. Tenho que acabar este romance, digo-me. Já não sabendo se o vou demorando, atrasando, porque não desejo perder este relacionamento único e furtivo, se é ela que não quer largar esta forma outra de regressar à vida.

Entrevista para a Storm-Magazine (2006)